O Mundial de Zidane
Por Eduardo Galeano (*)
Montevidéu, julho/2006 – No cenário da sanidade, um ataque de loucura. Em um templo consagrado à adoração do futebol e ao respeito de suas regras, onde a Coca-Cola proporciona felicidade, Master Card leva à prosperidade e Hyundai dá velocidade, são disputados os últimos minutos da última partida do campeonato mundial. Este é, também, a última partida do melhor jogador, o mais admirado, o mais querido, que está dizendo adeus ao futebol. Os olhos do mundo estão voltados para ele. E, subitamente, este rei da festa se converte em um touro furioso e investe contra um rival e o derruba, com uma cabeçada no peito, e se vai.
Deixa o campo por determinação do árbitro e pela vaia do público, que seria uma ovação. E não sai pela porta principal, mas pelo triste túnel que leva aos vestiários. No caminho, passa ao lado da taça de ouro reservada à equipe campeã. Ele nem a olha.
Quando este Mundial começou, os especialistas disseram que Zinedine Zidane estava velho. Mariano Pernia, o Argentina que joga na seleção espanhola comentou: “Velho é o vento, e continua soprando”. E a França derrotou a Espanha e Zidane foi, nessa partida, e nas seguintes, o mais jovem de todos.
Depois, no fim do campeonato, quando aconteceu o que aconteceu, foi fácil atacar o ruim do filme. Mas era, e continua sendo, difícil compreendê-lo. Será verdade? Não será um pesadelo, um sonho equivocado? Como pôde abandonar os seus quando mais necessitavam dele? Horacio Elizondo, o árbitro, lhe deu cartão vermelho com toda a razão, mas por que Zidane fez o que fez?
Ao que parece, o zagueiro italiano Marco Materazzi lhe dirigiu alguns desses insultos racistas que os energúmenos costumam gritar desde as tribunas dos estádios. Zidane, muçulmano, filho de argelinos, havia aprendido a se defender, desde a infância, quando recebia ataques desse tipo nos subúrbios pobres de Marselha. Conhece bem esses insultos, mas lhe doeram como a primeira vez, e seus inimigos sabem que a provocação funciona. Mais de uma vez fizeram com que perdesse a cabeça desta maneira suja, e Materazzi não é, digamos, famoso por sua limpeza.
Este Mundial esteve marcado pelas declarações das seleções, antes de cada partida, contra a peste universal do racismo, e Zidane foi um dos jogadores que o fez possível.O tema é candente. Às vésperas da Copa do Mundo, o dirigente político Jean-Marie Le Pen proclamou que a França não se reconhecia em seus jogadores, porque eram quase todos negros e porque seu capitão, um árabe, não cantava o hino nacional. Algum tempo antes, o treinador da seleção espanhola, Luis Aragonés, havia chamado de negro de merda o jogador francês Thierry Henry, e o presidente perpétuo do futebol sul-americano, Nicolas Leoz, apresentou sua autobiografia dizendo que nasceu em um povoado onde viviam 500 pessoas e três mil índios.
Mas pode-se reduzir a um insulto, ou a vários insultos, esta tragédia do vencedor que escolhe ser perdedor, do astro que renuncia à glória quando a tem ao alcance das mãos? Talvez, quem sabe, essa louca investida tenha sido, embora Zidane não quisesse, nem soubesse, um rugido de impotência.
Talvez tenha sido um rugido de impotência contra os insultos, as cotoveladas, as cusparadas, os chutes mal-intencionados, as simulações dos especialistas em contorções, mestres do ai de mim, e contra as artes de teatro dos farsantes que matam e exibem uma cara de não fui eu.
Ou, talvez, tenha sido um rugido de impotência contra o êxito esmagador do futebol feio, contra a mesquinhez, a covardia e a ganância do futebol que a globalização, inimiga da diversidade, está nos impondo. Por fim, na medida em que o campeonato avançava, ficava cada vez mais claro que Zidane não era deste circo. E suas artes de magia, sua presença, sua melancólica elegância, mereciam o fracasso, bem como o mundo de nosso tempo, que fabrica em série os modelos do sucesso, merecia este medíocre campeonato mundial.
E, de alguma maneira, também se pode dizer que a Itália merecia a Copa, porque todas as seleções, algumas mais, outras menos, jogaram à italiana e com o mesmo esquema de jogo, linha de quatro atrás, defesa fechada e gols roubados graças a contra-ataques.
A Itália se impôs, como tinha de ser. No final, o esquema tático causou muitos bocejos, mas também lhe deu quatro títulos mundiais. E ao longo desta quarta vitória sofreu dois gols, um contra e outro de pênalti, e na retaguarda, não na vanguarda, teve seus melhores jogadores: Buffon, goleiro, e Cannavaro, zagueiro.
Oito jogadores da Juventus chegaram à final em Berlim: cinco jogando pela Itália e três pela França. E se deu a casualidade de a Juventus ser a equipe mais comprometida nos escândalos que vieram à público pouco antes do Mundial. Das mãos limpas aos pés limpos: a justiça italiana parecia decidida a mandar para o exílio, a série B e a série C, os clubes mais poderosos, incluindo a Lazio, a Fiorentina e o Milan, do virtuoso Silvio Berlusconi, que praticou a fraude e a impunidade no futebol, nos negócios e no governo. Os juízes comprovaram toda uma classe de trapaças, contra árbitros, compra de jornalistas, falsificação de contratos, adulteração de balanços, divisão de posições no campeonato italiano, manipulação dos programas da tele...
Um ministro do governo anunciou a anistia caso a Itália vencesse o Mundial. A Itália ganhou. Tudo isso dará em nada, uma vez mais, e como sempre? Zidane foi punido por muito menos.
Alguém, não sei quem, soube resumir da seguinte maneira a Copa 2006: “Os jogadores têm uma conduta exemplar. Não bebem, não fumam, não jogam”. Os que de vez em quando acertavam a bola no gol, não jogavam bonito, e os que jogavam bonito nunca acertavam o gol. Toda a África ficou fora logo cedo, e não demorou muito para toda a América Latina também partir para o exílio. O campeonato mundial se converteu em uma Eurocopa.
Os resultados recompensavam este que agora chama de sentido prático: altos muros defensivos e na frente algum atacante, um Cavaleiro Solitário, implorando um favorzinho de Deus. Como costuma ocorrer o futebol e na vida, perde o que melhor joga e ganha o que joga para não perder.
Os pênaltis ajudaram a injustiça. Até 1968, as partidas difíceis eram definidas no cara ou coroa. De alguma maneira, continua sendo assim. Concluída a prorrogação, os pênaltis se parecem muito com o capricho do acaso. A Argentina foi mais do que a Alemanha, e a a França mais do que a Itália, mas uns poucos segundos puderam mais do que duas horas de jogo, e a Argentina teve de voltar para casa e a França perdeu a Copa.
Pouca fantasia foi vista. Os artistas deram lugar aos levantadores de peso e aos corredores olímpicos, que ao passarem chutavam a bola ou um adversário.
O Mundial foi tão aborrecido que os donos do negócio não tiveram outra coisa a fazer a não ser imaginar projetos para injetar entusiasmo no decaído espetáculo. Uma das idéias nascidas dentro da Fifa propõe castigar o empate não concedendo ponto às equipes. Outra sugere aumentar a distância entre as traves para aumentar o número de gols. E outra, se não te agrada este cardápio, pretendem uma Copa a cada dois anos.
Mas o futebol profissional, espelho do mundo, joga para ganhar, não por prazer, e o cálculo de custos zomba destas inúteis piruetas imaginárias dos burocratas que comandam o futebol mundial. Menos mal que o futebol profissional não é todo o futebol. Basta sair às ruas, ir às praias, aos campinhos, para comprovar que a bola pode rolar com alegria. No futebol profissional, o que aparece na televisão, pouca alegria se vê. Parecemos condenados à nostalgia do velho tempo dos cinco forwards e à triste comprovação de que agora nos resta apenas um, e no passo que seguimos nem um restará: todos atrás, nenhum na frente. Como comprovou o zoólogo Roberto Fontanarrosa, o atacante e o urso panda são espécies em extinção. (IPS/Envolverde)
(*) Eduardo Galeano, escritor e jornalista uruguaio, autor de As veias abertas da América Latina e Memórias do fogo.
(Envolverde/ IPS)
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